Doutor Araguaia: a história interrompida de João Carlos Haas terá exibição em Natal

Doutor Araguaia: a história interrompida de João Carlos Haas terá exibição em Natal

João Carlos Hass Sobrinho | Foto: Arquivo da família.

A despedida aconteceu sem que ninguém soubesse que era uma despedida. João Carlos Haas Sobrinho saiu de casa, no Rio Grande do Sul, no final dos anos 1960, levando consigo poucos pertences e um destino incerto. Era um jovem médico, recém-formado, que poderia ter seguido uma carreira convencional. Mas João Carlos escolheu outro caminho. Deixou a família, os corredores acadêmicos e a segurança da cidade para se embrenhar na floresta amazônica e se tornar parte da Guerrilha do Araguaia. Não voltou.

Foi apenas em 1979, sete anos depois de sua morte, que a família soube do desfecho. João Carlos havia sido morto pelo Exército brasileiro às margens do Rio Araguaia. Não houve velório, não houve enterro, não houve corpo. Apenas o silêncio, interrompido por fragmentos de relatos de ex-companheiros e documentos do Partido Comunista do Brasil (PCdoB).

Agora, quase meio século depois, a história de João Carlos volta à cena. O documentário Doutor Araguaia, dirigido por Edson Cabral, busca reconstruir a trajetória desse médico que trocou os hospitais pelo front de uma resistência armada contra a ditadura militar. O filme será exibido nesta sexta-feira (31) em Natal, às 19h, no Espaço Rampa, e contará com a presença de Sônia Haas, irmã do guerrilheiro.

A exibição faz parte da programação do Comitê Estadual de Memória, Verdade e Justiça (CEV) do Rio Grande do Norte, do Conselho Estadual dos Direitos Humanos e Cidadania (COEDHUCI) e do Partido Comunista do Brasil. Em entrevista à Saiba Mais, Sônia falou da importância em manter viva a memória de João Carlos e dos que desapareceram durante a ditadura militar.

SAIBA MAIS: Quem foi o Doutor Araguaia?

SÔNIA HAAS: Dr. Araguaia foi, digamos assim, um rebatismo que o Diego Moreira deu ao João Carlos. O Diego Moreira é o autor da história em quadrinhos, responsável pelo roteiro e pela criação da obra.

Há muitos anos, embora tenha demorado para conseguirmos produzir, ele escolheu esse título: Dr. Araguaia. Quando soube, fiquei profundamente emocionada, pois achei o nome muito forte, muito brasileiro. Além disso, dava ao João Carlos uma dimensão que ele merecia, assim como o próprio Rio Araguaia se apresenta para nós.

João Carlos foi morto às margens do Rio Araguaia. Ele escolheu ir para aquela região para lutar pelo povo de lá, então esse título carrega um significado muito especial. Tanto que pedi para repetirmos o nome no documentário, e o diretor aceitou.

Acredito que João Carlos toma para si esse rebatismo dado pelo Diego com toda a autenticidade que o nome carrega. É o nome da terra, de uma região lindíssima que conheci em 1987 e que, talvez, jamais teria despertado meu interesse se não fosse pela história do meu próprio irmão. Hoje, essa região faz parte da minha vida.

Sinto-me feliz e inteira quando estou lá, sabendo que João Carlos também esteve, que lutou por aquelas pessoas e por suas crenças.

Esse é João Carlos.

Ele foi um jovem brilhante, excelente estudante durante toda sua vida acadêmica, tanto no ensino básico quanto na universidade. Sua liderança começou a se destacar ainda na adolescência, quando organizava festinhas e campeonatos de futebol em nossa cidade. Ele sempre teve essa capacidade de reunir pessoas ao seu redor, algo que ficou evidente em toda a sua trajetória.

Quando entrou na universidade, sua liderança se multiplicou. Tornou-se uma figura ativa no movimento estudantil, mas sempre liderando pelo exemplo: era um aluno dedicado, com boas notas e boas relações com os professores.

Em 1964, logo no início do golpe, João Carlos foi preso por ser presidente do Centro Acadêmico de Medicina. Esse episódio marcou para sempre sua vida, mudando completamente sua trajetória. A partir dali, passou a ser cada vez mais perseguido, perdendo a tranquilidade necessária para estudar e exercer a medicina, como tanto desejava.

Então, acabou se deslocando do Rio Grande do Sul e se uniu ao PCB, atuando em São Paulo e no Rio de Janeiro. Viajou para a China e, mais tarde, integrou a Guerrilha do Araguaia.

João Carlos foi morto muito jovem, aos 31 anos, em setembro de 1972. Nossa família só soube de sua morte em 1979. Foram sete anos de completo silêncio, sem qualquer notícia, sem sequer imaginar o que havia acontecido.

Esse longo período foi de extrema angústia e sofrimento para nós, uma ausência repleta de incerteza. Em 1979, tivemos a confirmação e, em 1980, durante um congresso do Partido Comunista na Bahia, minha prima representou a família e confirmou a participação dele na guerrilha. A partir daquele momento, tivemos que encarar essa verdade, que estava registrada nos livros, nos relatórios do Partido Comunista e nos depoimentos de Elsa Monnerat.

Desde então, essa perda imposta se tornou uma realidade com a qual precisávamos lidar.

Sônia Haas defende o legado do irmão guerrilheiro. / foto: acervo pessoal

SAIBA MAIS: Como surgiu a ideia desta produção?

SÔNIA HAAS: O documentário surgiu por iniciativa do diretor Edson Cabral, que mora em Palmas e conhece muitas pessoas da região do Bico do Papagaio. Ele começou a perceber que várias dessas pessoas haviam sido pacientes do João Carlos e que todas tinham histórias de sucesso em suas recuperações.

Em uma conversa, alguém lhe mostrou uma cicatriz de uma cirurgia de apendicite feita por João Carlos na década de 1960. Naquela época, era muito difícil realizar esse tipo de procedimento na região; quem tinha condições financeiras precisava viajar de avião para cidades maiores.

João Carlos chegou à região em 1967, em Porto Franco, na beira do Rio Tocantins, e começou a operar, salvando muitas vidas.

Edson Cabral teve contato com essa história e se interessou ainda mais por João Carlos, pois já vinha acompanhando minhas lives durante a pandemia de Covid-19. Ele assistiu a várias dessas transmissões e se aprofundou no tema.

Foi então que me chamou para esse desafio, e seguimos juntos. Ele bancou as primeiras entrevistas e deslocamentos, e, aos poucos, o projeto foi tomando forma. Percebemos que valia a pena construí-lo para concorrer no edital da Lei Paulo Gustavo, pois se tratava de uma história com envergadura e relevância para o Brasil.

Fomos selecionados pelo edital do Tocantins e conseguimos finalizar o projeto com o apoio da produtora MZN, renomada no ramo do audiovisual. Assim, Dr. Araguaia ganhou a poesia e a força comunicativa que merecia, trazendo uma mensagem de esperança e coragem, como a história de João Carlos exige.

SAIBA MAIS: Como foi o processo de produção?

SÔNIA HAAS:  O processo de produção começou com a montagem do roteiro e do argumento, baseados na minha própria busca. Desde os 20 anos, busco por João Carlos – hoje tenho 66. São 46 anos de uma trajetória pessoal de pesquisa.

Tenho documentos, recortes de jornal e conheci muitas pessoas que foram amigas de João Carlos ou que participaram da Guerrilha do Araguaia. Entre elas, Crimea Alice e José Genoino Neto.

Fiz questão de garantir o aval da Fundação Maurício Grabois, por meio do historiador e jornalista Osvaldo Bertolino, para validar os conteúdos históricos e evitar deslizes ou omissões.

Seguimos então para o Rio Grande do Sul e para a cidade onde João Carlos viveu, Porto Franco, no Maranhão. Tivemos apoio das prefeituras de Porto Franco e de São Leopoldo, onde ele nasceu.

Durante esse percurso, realizamos mais de 60 entrevistas, digitalizamos todo o meu acervo pessoal e reunimos minha família para compartilhar memórias sobre João Carlos. Conversamos com colegas de faculdade e de militância, criando um material riquíssimo.

O filme conseguiu unir, em uma única peça, a trajetória de 31 anos de João Carlos. Uma vida curta, mas extremamente intensa, que deixou marcas profundas por onde passou.

Além da importância histórica, há no documentário uma beleza especial, pois ele também resgata a dimensão afetiva da vida de João Carlos: sua juventude, seus amores, sua relação com a natureza, os lugares por onde caminhou. O resultado foi um filme muito rico nesse sentido.

SAIBA MAIS: Quais as lembranças mais fortes da sua relação com João Carlos?

SÔNIA HAAS:  Guardo lembranças muito bonitas dele. João Carlos era o segundo de sete irmãos, e eu sou a sétima. Quando ele saiu de casa, eu tinha apenas sete anos, mas suas memórias ficaram vivas em mim.

Lembro dele se abaixando para conversar comigo, me trazendo livros infantis, nos chamando para ouvir discos com sons de batimentos cardíacos. Lembro dele me levando ao cinema, sempre cercado de amigos.

Ele era uma pessoa justa, sempre me protegeu e me incluía nos passeios, enfrentando até a superproteção da nossa mãe. Para mim, ele era um herói.

Sempre imaginei que um dia o reencontraria vivo, que poderia abraçá-lo e ver seu sorriso novamente. Essa esperança me acompanhou por muito tempo.

E, além do amor fraternal, também fiz uma promessa aos nossos pais: jamais deixaria sua história se apagar e buscaria seus restos mortais para trazê-los de volta a São Leopoldo.

SAIBA MAIS: Como foi e tem sido para a família conviver com a dor da perda e da procura por respostas do Estado?

SÔNIA HAAS:  A dor da perda é muito individual, né? Cada irmão sente de um jeito, porque cada um conheceu e conviveu com o João Carlos em uma época diferente.

Mas a família, como um todo, sofre muito, pois houve um silêncio de muitos anos. Não podíamos tocar no assunto, porque ele trazia tristeza, e evitávamos falar sobre o que nos fazia chorar. Em nossa casa, não podíamos chorar. Isso tem um pouco a ver com nossa raiz alemã, germânica, que carrega essa cultura de não falar das dores.

O coletivo da família ficou muito prejudicado nesse sentido, pois não vivemos essa dor juntos, não compartilhamos esse vazio. É muito triste pensar que tínhamos um irmão que nunca mais vimos e de quem não pudemos nos despedir. Acho que essa é a marca mais forte que ficou na família. Minha mãe sempre sentiu muito por não ter tido essa despedida, e isso a marcou profundamente.

Por outro lado, há também a angústia da busca pela verdade, de pedir respostas e não as obter. Isso nos deixa muito chateados e com a sensação de abandono por parte de quem causou essa ferida em nossa família. Esse sentimento de abandono é muito forte.

Ainda temos a expectativa de saber exatamente onde o João Carlos morreu, quem o matou e em que circunstâncias. Temos anotações do partido, mas nada oficial. Isso nos incomoda profundamente. É uma ferida que ainda não cicatrizou e que continua aberta.

SAIBA MAIS: Qual a sua expectativa com a produção e exibição da história e memória do Hass Sobrinho?

SÔNIA HAAS:  Minha expectativa, ao contar a história do João Carlos – agora Doutor Araguaia –, é que as pessoas conheçam melhor o que aconteceu no Brasil durante a ditadura. Que compreendam quem eram esses jovens. Sempre digo que, quando falamos de um desaparecido, falamos de todos. Quando conto a história do João Carlos, de certa forma, estou contando a história de todos, porque os impactos na sociedade e nas famílias são os mesmos.

Espero que os jovens se interessem por essa história e que ela chegue a todos os cantos do Brasil por onde ele passou. Tem sido muito bonito ver a receptividade das populações em lugares como São Leopoldo, Porto Franco, Imperatriz e Araguaína. É muito emocionante. E sempre acontece algo especial: surgem novas histórias, novos depoimentos, o que me toca profundamente.

Estou vivendo um momento que nem sei como definir. Não é exatamente de glória, mas de satisfação. Ver essa trajetória transformada em um produto de arte e mídia, acessível ao público, é algo muito significativo.

Ainda não está disponível nas plataformas, mas em breve estará. Estamos fazendo questão de lançar o documentário presencialmente, para criar um movimento de envolvimento com as pessoas – sejam do Partido Comunista, da sociedade civil, sindicatos ou movimentos estudantis. Estamos indo até os lugares para realizar esses lançamentos, e isso tem sido muito positivo.

Acredito que o Doutor Araguaia trará mais conhecimento sobre a ditadura e, especificamente, sobre a trajetória de um jovem gaúcho, estudante de medicina, que decidiu dedicar sua vida à luta por justiça social e democracia.

É importante que as pessoas saibam que houve quem precisou dar a vida, quem precisou lutar, ser preso e torturado para que hoje possamos viver essa experiência democrática – que ainda não é plena, mas está em construção. Então, é isso que espero do Doutor Araguaia: que ele alcance o maior número possível de pessoas e ajude a esclarecer o que aconteceu,  para que nunca mais se repita.

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